SÃO PAULO – Se ainda não podemos chamar o atual período de calmaria, é consenso que o pior da crise financeira mundial já passou. Com a distância temporal dos eventos mais traumáticos, como a queda do Lehman Brothers e o resgate bilionário de Wall Street, é possível apontar culpados?
Existem duas linhas de acusação, e ambas recaem sobre o Fed. Por um lado, está a atuação do banco central norte-americano em relação à política monetária. A taxa básica de juros do país, a Fed Funds Rate, foi mantida em níveis extremamente baixos por um longo período de tempo.
Política monetária
Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve de agosto de 1987 até janeiro de 2006, defendeu-se das críticas em um texto publicado recentemente intitulado “A Crise”. Em sua linha de argumentação, o movimento de queda dos juros foi generalizado e deveu-se à expansão dos mercados emergentes. Não foi, portanto, um elemento específico dos EUA.
Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia em 2001, concorda. Em conversa com Paul Maidment durante o último Fórum Econômico Mundial, em Davos, o economista afirmou que se os bancos estivessem fazendo o seu dever, as taxas teriam sido uma oportunidade. “O capital teria sido alocado para o lugar em que ele é mais eficiente. Nossa economia teria crescido e agora estaríamos atravessando um boom”, pondera.
Carlos Eduardo Soares Gonçalves, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP (Universidade de São Paulo), diz que os juros baixos têm sim correlação com a formação de bolhas e com os preços de ativos, um dos fatores que impulsionaram o derretimento das finanças globais.
Regulação do sistema financeiro
Mas “eu minimizo esse papel. Mais importante do que a política monetária expancionista de parte da era Greenspan foi a falta de regulação durante esses anos, o que também foi encabeçado pelo Federal Reserve”, aponta.
Nesse ponto, Greenspan reconhece as falhas do sistema regulatório, que em sua opinião pecou principalmente ao não exigir das empresas financeiras somas maiores de garantias em capital. Já para Joseph Stiglitz, o capitalismo mudou, mas a regulação não acompanhou essa evolução. “Com a presença de regulação inadequada, as crises, que foram 120 ao redor do globo nessas últimas três décadas, tornaram-se características sistêmicas do sistema bancário”, apontou.
Para João Pedro Ribeiro, analista da Tendências Consultoria, “não existe dúvida de que houve um problema de regulação”. Assim, é consenso que a falta de regras claras sobre o sistema financeiro pode ser atribuída como principal causa para a crise. Mas, se a grande culpada já foi apontada, é importante sabe o que está sendo feito para que os mesmos estragos não sejam repetidos.
Agência de Proteção ao Consumidor
Um dos pontos centrais do plano de regulamentação proposto pela administração de Barack Obama é a criação de uma Agência de Proteção ao Consumidor. A princípio, ela seria independente. No entanto, o senador Christopher Dodd teve que fazer algumas concessões durante tentativas de construir um projeto bipartidário.
Uma delas foi a subordinação da Agência ao Fed. Para advogados especializados em direitos do consumidor, seria um erro porque o Federal Reserve não é capaz de regular práticas abusivas de empréstimos e ao mesmo tempo zelar pela saúde do sistema financeiro.
Para Ribeiro, partir do pressuposto de que se esse tipo de poder (o Fed tem a maior autoridade entre os reguladores para escrever leis sobre práticas de empréstimos e despejos, por exemplo) nas mãos da autoridade monetária dos EUA é um problema “é um argumento com o qual eu não concordo”.
Ribeiro acredita que o ponto principal do plano de regulamentação será o requerimento de capital. Segundo ele, ficou provado que é o jeito mais efetivo para esse tipo de prevenção de crise, além de ser ampla e supervisionar todas as instituições do sistema financeiro sem precisar de mecanismos específicos para cada uma delas.
Soares, por sua vez, vê com bons olhos uma agência que dê informação para os consumidores, mas não acredita que isso resolverá todos os problemas.
“Grandes demais para quebrar”
Isso porque ainda restam outros entraves, como as instituições financeiras “grandes demais para quebrar”. A “resolução de autoridade” contida no plano de Dodd possibilitaria ao governo desmembrar grandes bancos, por exemplo, se a bancarrota iminente ameaçasse o sistema.
Soares é a favor desse posicionamento. Para ele, uma empresa que é muito grande para falhar não pode existir. “Isso foi um grande erro na condução da crise, parte do fardo tinha que ter caído mais pesadamente sobre os acionistas e os detentores de títulos dos bancos”, e não sobre os contribuintes norte-americanos.
Mas já falhou uma vez...
O jornal New York Times, por sua vez, criticou algumas das concessões feitas pelos democratas. A falta de controle sobre os derivativos, por exemplo, não permitiria que o governo tivesse uma dimensão real de como esses ativos ligam uma instituição com problema às outras.
O editorial ainda afirma que “uma reforma fraca seria pior do que nenhuma reforma, porque daria cobertura para o status quo sob o disfarce de mudanças”. Soares discorda. “Não acredito que seja melhor não passar nada do que não passar o plano perfeito de regulação”.
É necessário ficar de olho nos derivativos e discutir constantemente aprimoramentos na forma de regulamentação para impedir a tomada de risco excessivo, e relembra que "toda regulamentação vai ficando obsoleta porque os produtos vão mudando, esse processo é dinâmico”.
Mercado de crédito
Soares ressalta também que é necessário uma regulação mais forte para o mercado de crédito, que funciona de um modo bastante diferente do mercado financeiro, pois as trocas acontecem ao longo do tempo e os bancos “tomam risco com o chapéu alheio”.
“Mas isso não é uma mudança de paradigma”, declara quando perguntado se a intervenção do Estado na economia é um distanciamento do modelo neoliberal. João Pedro Ribeiro concorda. “Vale lembrar que o mundo aproveitou bastante o período anterior à crise amparado por essas políticas modernas e mais liberais”.
Momento atual
Se a proposta que será votada pelo Senado norte-americano no início de abril ainda traz falhas, ela deverá incorporar o aumento dos requerimentos de capital, apontados por todos citados nessa reportagem como um dos principais fatores para a saúde do sistema financeiro.
No entanto, a taxa básica de juros continua muito baixa. Isso seria um problema? Para Ribeiro, a inflação e a atividade econômica nos países centrais ainda fornecem espaço para essa política monetária extremamente acomodativa. No entanto, ele aponta um problema: não se sabe ao certo qual pode ser o resultado da combinação de juros historicamente baixos com déficits fiscais monstruosos.
Para Greenspan, os reguladores vão provavelmente perder a formação do cenário para a próxima crise, como já fizeram tantas vezes no passado. Isso porque, em sua opinião, não é possível prever se um determinado produto será tóxico em alguns anos. Assim, a proposta de regulação está na mesa. Mas não é possível saber ao certo se ela será capaz, por si só, de evitar uma próxima crise.
Fonte: InfoMoney