Quando o mago Abramelin criou o “Jogo do Ganha-Ganha”
Como exercer a Fraternidade no Século XXI? Eis as histórias de um velho sábio da cabala, de uma ONG de dependentes químicos e da estratégia de levar dupla vantagem através do compartilhamento de bens materiaiS
Por HUGO STUDART
Certa feita Abramelin, “O Judeu”, recebeu a visita de três alquimistas que foram tentar convencê-lo a não divulgar por demais suas investigações sobre a magia cabalística. Abramelin foi um grande mago que peregrinou pela Europa no ápice do Renascimento pesquisando os segredos da velha cabala hebraica, ensinados pelos egípcios a Abraão. Legou à humanidade um compêndio detalhado sobre as hierarquias sagradas, arcanjos, anjos, querubins e serafins, como também das potestades materialistas – nomes e características, legiões a sub-legiões a que pertenceriam e, o mais importante, como invocá-las e o que obter de cada uma delas.
Por volta do ano 1600, o velho sábio decidiu registrar todo seu conhecimento por escrito. Mais que isso, tinha por hábito compartilhar o resultado de suas pesquisas espirituais com os aprendizes que o procurassem, vindos de todos os cantos da Europa, África e Oriente. Por isso foi abordado pelos três alquimistas. Queriam convencê-lo a ser mais reservado. Suas descobertas eram por demais relevantes. Ensinavam a invocar os arcanjos. Até aí, tudo bem. Mas também ensinava como obter toda sorte de favores dos demônios. Poderiam proporcionar poder demais aos iniciados. Ensinava como obter a amizade de reis e príncipes, seduzir donzelas, arranjar aliados e até mesmo como conseguir ouro, prata e outras riquezas. Os três alquimistas já haviam testado os ensinamentos. Funcionavam. Era poder demais para mentes despreparadas.
Abramelin só escutava os argumentos. Nada respondia. Até que em determinado momento um dos sábios alquimistas veio com um argumento novo.
-- Pelo menos não ensine tudo o que sabe. Guarde sempre algum segredo importante. Assim o senhor será sempre o mago mais poderoso do mundo. Sua fama se espalhará para além do Oriente e o senhor estará sempre cercado de discípulos. Os aprendizes virão e estarão sempre retornando com presentes para obter novos conhecimentos. E ao retornarem, o senhor arranca de cada um deles o que aprenderam com outros mestres. Assim nenhum discípulo jamais terá tanto poder ou fama quanto o senhor.
Era um argumento novo, registrou Abramelin em suas memórias, lidas com atenção por Voltaire. Ora, o que o aquele alquimista estava dizendo, em linguagem coloquial, é para ele não revelar o “pulo-do-gato”. Usando o dialeto marxista, era para não socializar seu capital acumulado (o conhecimento). Ao contrário. A idéia era virar uma espécie de precursor do capitalismo selvagem. O plano era usar os jovens discípulos para fazer aquilo que, quase três séculos mais tarde, Marx definiria como “mais-valia”. Ou seja, ao invés de compartilhar, como o velho cabalista vinha fazendo, seria melhor acumular, acumular e acumular cada vez mais seu principal capital, o conhecimento. Abramelim refletiu. Refletiu. Ele não registra se ficou tentado pela obtenção da fama, das riquezas e do poder que o plano lhe proporcionaria. Registra apenas que refletiu bastante. Disse, então:
-- Peguem aquelas lâmpadas que estão acolá.
Eram os tempos das lamparinas a óleo, em formatos que lembravam muito a lâmpada mágica do gênio de Aladim, aquele personagem d’As Mil e Uma Noites, que tanto preencheu nossos imaginários infantis. Os alquimistas se levantaram, pegaram as lâmpadas e sentaram-se de novo em frente a Abramelim.
-- Agora acendam as suas lâmpadas na minha lâmpada.
Acenderam.
-- E então?, indagou o velho. – Vossas lâmpadas apagaram minha lâmpada? Vossas luzes apagaram a minha luz? – insistiu.
Diante do estupor dos três alquimistas, o mago então concluiu:
-- Ao contrário. Minha sala ficou muito mais iluminada. E sou eu quem mais está se beneficiando com isso.
Quatro séculosa mais tarde, os gurus da Administração de empresas formulariam teorias e métodos que utilizam da sinergia de pessoas ou equipes para multiplicar a eficiência do trabalho e maximizar os lucros. Costumam chamar tal estratégia de “Jogo do Ganha-Ganha” – em referência à uma das premissas do capitalismo selvagem, no qual quando um ganha, alguém perde. Nesse caso, paradoxalmente, todos ganham.
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Março de 2010: NA TERRA DOS ANJOS CAÍDOS
Henrique Cascão França envia-me um e-mail contendo um link para o portal “You Tube”. Ora, pois, passaram-se quase 600 anos desde a lição que nos foi legada por Abramelin. Estamos na pós-modernidade, tempos de economia de mercado global, no qual a maior parte da humanidade, em especial no Ocidente, oscila seu imaginário entre o individualismo neo-liberal e o vazio do niilismo. Em toda nossa História, decerto estamos vivemos o ápice do egoísmo existencial. Então Henrique França envia-me uma mensagem com um link para o “You Tube”. Queria que eu assistisse.
A esta altura os senhores, prezados leitores, hão de estar indagando: quem é Henrique? O que contém esse vídeo de relevante? E o que tem a ver com o velho Abramelin da narrativa acima? Ora, ora, os senhores hão de concluir, antes mesmo do final da história, que o objetivo desta crônica é relatar algum episódio que relacione a grande lição de Abramelin – as vantagens de compartilhar a luz – com o vídeo enviado pelo amigo.
Henrique França é um adicto. A expressão vem do latim, dependente, escravo. Ele é dependente químico. Está “limpo” há um bom tempo, anos. Mas um adicto será sempre um adicto, é uma doença para toda a vida, como a diabetes ou a hipertensão. Cada dia que se mantém “limpo” precisa ser celebrado. Os dependentes acordam e, todos os dias, a cada dia, repetem a máxima “só por hoje”, “só por hoje buscarei me manter limpo”. Amanhã é outro dia. Henrique é fundador de uma Organização Não Governamental, a ONG “Salve a Si”, que busca recuperar dependentes de álcool e outras drogas.
A instituição fica nas imediações de Brasília, em uma fazendola a 55 quilômetros da capital brasileira. O local é idílico. Tem uma belíssima vista para os quatro cantos cardeais. Olhando de frente, a oeste, passa a linha de trem. O comboio pode ser visto todos os dias ao pôr-do-sol. Há nascente, duas matas, plantação de árvores e o encontro de um riacho com um rio, onde ele está construindo uma pequena represa para abastecer os tanques de piscicultura. Na casa sede abrigavam-se, em março de 2010, cerca de 25 homens em recuperação.
-- São anjos caídos à procura da luz -- certa feita disse-me Henrique, numa de nossas muitas conversas.
Em priscas eras, bem antes de conhecê-los, por vezes me referia aos dependentes por bêbados e drogados, termos por certo preconceituosos. Não era o único a acalentar resistências. Aliás, fazia parte de uma maioria social. Aprendi, com a ajuda de Henrique, a respeitá-los. A vê-los como anjos caídos à procura de luz. Aprendi a ver senão um pouco de Deus em cada um
São muitos os seres do mundo à procura de uma fresta de luz. Há poucos santos iluminados. E há uns 6 bilhões de humanos caídos. Uns são adictos de comida. É a gula. Outros, de amor e sexo. Chama-se luxúria. Outros, adictos das riquezas. É a ganância. Ou do trabalho alheio. Chama-se de preguiça. Ou de poder. É a ambição dos tiranos e liberticidas em geral. Vivem quase todos de tirar a energia alheia para preencher os vazios de luz. Chama-se isso de vampirismo. Cada um de nós tem algumas adicções, em maior ou menor grau, medo, inveja, rancor, soberba... Não sei quantos têm consciência disso. Não sei quantos desses dependentes estão a procura de luz. Conversamos, eu e Henrique, sobre esses diferentes tipos de quedas e da incessante procura pela luz através dos muitos caminhos do bem.
São tamanhas nossas afinidades espirituais e intelectuais que Henrique acabou se tornando meu irmão mais novo. Atravessamos horas a observar a chegada dos tucanos e das maritacas às árvores daquela terra, conversando sobre história antiga e sobre as opções da espiritualidade, da política, dos movimentos sociais e das fraternidades. Henrique gosta de repetir que “somos todos helenos” – numa referência ao plano de globalização da humanidade perpetrado por Alexandre da Macedônia (sobre essa história, planejo escrever uma crônica n’algum dia desses).
Henrique já esteve muito tempo preso. Por drogas. Lá na frente vamos escrever em conjunto um livro sobre essa experiência. Mas um dia ele começou a amar uma mulher, Alecsandra. Resolveu se tratar e buscar os Caminhos do Bem. Hoje o casal vive na fazendola com a filhinha Arella. Aprendi a respeitar e a ajudar os anjos caídos com a ajuda desse novo irmão.
Os adictos da Salve a Si acabaram de construir uma horta orgânica. Parte do tratamento é com laborterapia. É uma grande e belíssima horta. O plano é iniciar um projeto auto-sustentável. O que não for consumido pelos próprios internos em recuperação, será vendido numa feira livre ali perto pelos adictos que já receberam alta.
Recentemente, o Jornal de Brasília publicou uma matéria de página inteira sobre o trabalho da ONG. Agora, em meados de março, uma equipe do Sindicato dos Produtores Orgânicos do Distrito Federal apareceu para fazer uma reportagem em vídeo sobre o trabalho da ONG e sobre a horta orgânica. Virou um programa de 5 minutos, enorme para os padrões da televisão. Ainda não sei onde já foi ou será exibido. Mas Henrique recebeu cópia do programa e o publicou no “You Tube”, com a autorização dos produtores. Então me enviou o e-mail ao qual me referi parágrafos acima. (Ao final desta crônica está o link para o You Tube.
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Março de 2003: NA TERRA DAS ÁRVORES PLANTADAS
Eu e minha amada Adriana finalmente encontramos uma terra para comprar. Era um sonho muito antigo, acalentado desde os 17 ou 18 anos. Plantar árvores, criar uma floresta numa terra aprazível para mais tarde, anos mais tarde, talvez quando me aposentasse, viver numa casa de campo, com meus discos e livros... e nada mais. Só cortando árvores quando precisasse de dinheiro para pagar as contas. Por duas vezes já participara de projetos coletivos de plantar árvores, aos 18 e aos 38 anos. Ambos fracassaram, cada um por suas razões.
Essa terceira tentativa seria apenas um projeto do casal. Encontramos uma terra a 55 quilômetros de Brasília, com mirante para os quatro cantos cardeais, de frente para o trilho de trem, com nascente, mata e, o bem mais precioso, no encontro de dois rios. Quem a encontrou para mim foi um bom amigo, Rogério Rosso.
Fomos conhecer a terra junto com Rogério. Lá morava há 25 anos uma família. Era a mãe idosa e cinco irmãos já ultrapassando a meia idade, todos solteiros e sem filhos. Tudo lá era infértil. A casa, muito grande mas desengonçada. Havia muito lixo em volta da casa, ferro velho de mais de 20 anos. Rogério, talvez preocupado com a má aparência do local, foi logo dizendo:
-- É um pessoal muito simples. Não olhe para a casa. Repare apenas na paisagem e pense como pode ficar.
Olhe o encontro dos rios, o valor da terra está nisso, no encontro dos rios.
Compramos. Só de lixo, retiramos cinco containeres. Construímos uma casa de caseiro. Reconstruímos a casa sede. Fizemos as cercas. Erguemos um viveiro de mudas. Abrimos estradas internas. Aramos a terra quase inteira e corrigimos o solo. O mais importante: plantamos árvores. Entre mudas de mogno, pau-ferro e neen indiano, plantamos quase 5 mil árvores. Principalmente neen. Estão crescendo.
Batizamos a terra de “Paititi” – espécie de Eldorado, Sangrilá, a Terra Prometida dos guaranis. O sítio ficou lindo. Íamos lá todos os finais de semana. Então tivemos que nos afastar de lá. É uma longa história, outra história. Mas tivemos que ficar um tempo longe e o mato começou a tomar conta, a sufocar as árvores. E as formigas a matá-las.
Um dia, conversando com um amigo, coordenador dos Vicentinos (grupo de caridade católico), ele nos apresentou uma ONG de tratamento de dependentes químicos que precisava de um novo local para se instalar. A idéia era fazer um comodato. Emprestaríamos a terra e as instalações. E o pessoal da ONG cuidaria das árvores para nós.
Chamaram-nos de loucos. “Confiar em drogados?”, alertou um. “Vocês podem perder tudo”, argumentou outro. “O Brasil é capitalista”, disse um terceiro. Decidimos arristar. “Sim, nós vamos tentar compartilhar”, respondemos. Está dando certo. Henrique França mudou-se para lá com a mulher e a filha. Depois levou os sogros. Construiu e reformou instalações. Criou um orquidário. A terra está enfeitada de orquídeas e outras flores. Cada vez que visitamos Paititi é uma nova alegria, uma nova surpresa.
A mais recente, a inauguração da horta orgânica, que mereceu até reportagem especial do Sindicato dos Produtores de Orgânicos de Brasília.
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-- A tua luz apagou a minha luz? – perguntaria o velho mago Abramelin.
-- Não – respondo. Ao contrário, nossa terra está duplamente esverdeada. Está ficando cada vez mais verde.
Querem a prova? Então conheçam Henrique França. O projeto de recuperação dos dependentes químicos. E a terra que batizamos de Sítio Paititi, mas que hoje vem sendo chamada de “Fazenda Salve a Si”.
Enfim, e por fim, os senhores, prezados leitores, conhecerão um projeto social que estamos (nesse caso me incluo nele) edificando embasado na tríade Iluminista – Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Nos últimos dois séculos, só se deu importância às duas primeiras idéias. Já era tempo de se pensar na terceira ponta, a Fraternidade.
Eis o link para assistir o vídeo no You Tube: